Entrevista realizada com feita com Lia Spínola, da Ecotece, uma ONG que desde 2005 atua no campo da moda sustentável. Seus projetos visam colaborar na transformação da cadeia da moda para torná-la ética, limpa e inclusiva. A Lia contou na entrevista sobre os desafios de lidar com constantes mudanças no planejamento de um projeto e como isso impacta nas estratégias para envolver os beneficiários e também no crescimento da organização.
Este é um episódio de uma série de casos gravados a partir dos desafios que gestores de projetos de negócios socioambientais brasileiros vivenciam nas suas instituições. Estes gestores compartilharam seus desafios na Jornada PQPS! discutindo suas Perguntas e Questionamentos sobre Projetos Socioambientais.
Estes casos foram desenvolvidos e gravados pela equipe da Rede Tekoha. Apoiou na produção dos podcasts a Aupa; na seleção dos casos a ponteAponte, e os recursos vieram da chamada Elos de Impacto realizada pelo ICE.
Transcrição do episódio
Apresentação
Rede Tekoha e Instituto de cidadania empresarial apresentam:
PQPS Perguntas e Questionamentos Sobre Projetos Socioambientais. Uma conversa aberta com quem trabalha com projetos no campo de desenvolvimento socioambiental.
Márcio
Bom dia, boa tarde, boa noite.
Seja muito bem-vinda, seja muito bem-vindo para a nossa conversa de hoje na jornada PQPS, Perguntas e Questionamentos sobre Projetos Socioambientais. Eu sou o Márcio Pires, falando pela Rede Tekoha, e esta conversa é parte de uma série de papos com quem atua na gestão de projetos socioambientais no Brasil neste ano tão desafiador que é 2020.
Vamos juntos mais uma vez, mergulhar nas vivências de quem faz acontecer o campo de desenvolvimento socioambiental, e a nossa entrevistada desta edição é a Lia Spínola do instituto Ecotece. O Ecotece é uma organização que atua desde 2005 na área da moda sustentável desenvolvendo projetos que visão colaborar na transformação da cadeia da moda para torná-la ética, limpa e inclusiva. E a Lia está trazendo para nós hoje o EcoteceMais, que é um negócio que nasceu como resposta a demanda na organização em 2013. Atua viabilizando produções de peças de moda ética e sustentável por meio da parceria entre marcas e grupos produtivos em situação de vulnerabilidade. A gente vai conversar com a Lia hoje sobre os projetos de produção e a organização de processos, calendários, rede produtiva, logística, etapas da produção, relacionamento com o público, conferência da qualidade, entregas das peças prontas para serem vendidas pelas marcas, que é o trabalho dela.
Tudo legal com você, Lia? Prazer em reencontrar você, porque a gente já se conhece, mas não temos contato há muito tempo.
Lia
Oi Márcio, primeiro obrigada pelo convite é um super prazer estar aqui conversando com vocês e compartilhar um pouco da nossa história, desafios do Ecotece nesta jornada do trabalho social dentro da moda.
Márcio
Conte para a gente para começar que tipo de problema mais acontece nestes tipos de projetos de produção que vocês estão lidando hoje.
Lia
Como você comentou, o Ecotece é uma ONG, um instituto do terceiro setor, que trabalha com moda sustentável e a gente tem um programa/negócio social que basicamente vai atender marcas que estão dentro do mercado de moda que querem produzir de uma maneira mais ética, com mais inclusão. A gente apoia uma rede produtiva de grupos vulneráveis, principalmente formados por mulheres dentro de comunidades periféricas e grupos ligados a redes de saúde mental. E o objetivo desse projeto é gerar renda para estes grupos, gerar fortalecimento e gerar parcerias sólidas dentro do mercado. Então acho que uma característica que é importante, para entender um pouco dos nossos desafios é que a gente vai trabalhar por marcas bem diferentes e produzir peças muito diferentes. Então, vai desde uma camiseta, por exemplo, até peças complexas como um blazer e calças de alfaiataria. Nesse momento da pandemia, por exemplo, a gente já foi para o outro extremo, que era produzir máscaras, que também teve os seus desafios, porque não é o produto que a gente tinha em linha, mas que também gera outro desafio que é a escala. Então nesse momento da pandemia, a gente chegou a produzir mais de 88 mil máscaras junto dessa rede em três meses.
Falando um pouco dos grupos, eles são 13 grupos hoje, todos espalhados por São Paulo e Grande São Paulo. Então a gente vai ter uma característica também de trabalhar com grandes distâncias e com uma produção que às vezes é desmembrada. Então eu vou ter um produto que ele pode passar por diversos grupos, e esses grupos também são bastante distintos entre si. Então eles vão ter conhecimentos distintos, maturidade, tempo de negócios diferentes, expertise diferentes também. Falando um pouco dos problemas no geral que acontecem na produção a gente vai ter, acho que primeiro problemas básicos e recorrências, acho que qualquer pessoa que trabalha com produção vai se identificar.
Então por exemplo, problemas de qualidade, peças que estão mal-acabadas, manchas, um zíper que não abre, falha em estampa, por aí vai, a gente vai ter um universo enorme de problemáticas neste sentido. Problema com atraso que principalmente estão relacionados nesta questão de trabalhar numa cadeira bem longa, então desde do primeiro relacionamento com o cliente, quando a gente constrói um calendário, e por exemplo, ele chega para gente falar: Eu tenho uma coleção que eu preciso lançar em tal época ou eu tenho um evento que eu preciso que essas peças estejam prontas. A gente vai começar a construir um calendário com a maior flexibilidade que a gente puder, com prazos que possam ter margem para resolver os problemas. Só que de repente o cliente começa atrasar nas respostas, ele demora para entregar os materiais que a gente, vão existir questões de fornecedores de tecido, por exemplo, insumos que pré inicialmente te falam que vão te entregar o material em tal data e de repente isso começa atrasar, os grupos também porventura fazem planejamento e depois não conseguem cumprir.
Então, eu acho que essa questão de atraso é bem complicado quando a gente fala de produção em cadeia, porque vai virar uma bola de neve, é um monte de gente que está envolvido dentro desse processo, e um vai atrapalhando o planejamento do outro. E aí eu acho que vai ter uma questão das problemáticas mais ligadas ao público com que a gente atua. Então, a gente vai atuar com grupos bem vulneráveis, cada um com suas questões, mas as coisas mais recorrentes que acontecem são questões relacionadas à saúde. Se as pessoas precisarem ir ao médico, doenças familiares, isso é um imprevisto, e acaba prejudicando as produções, os grupos são pequenos também, então acaba sendo um grande impacto. Vulnerabilidade da localidade, às vezes existe a questão que choveu, por exemplo, teve enchente e a gente não consegue pegar uma produção, falta de luz, e por aí vai.
Acho que vão ter alguns outros problemas que não são tão recorrentes, mas que também às vezes geram grande Impacto, eu me lembrei de uma coisa que está acontecendo agora no Ecotece, por exemplo, quando chega um projeto para gente, alguém fala: eu quero produzir tal coleção e as minhas peças serão assim. O que a gente vai fazer, é tentar fazer um meeting, digamos assim, com a expertise de um grupo. Então, eu vou entender o que aquela marca que é produzir e vou pensar o grupo certo para fazer isso é aquele, e às vezes a gente erra.
Por exemplo, nesse momento eu estou com sério problema de produção que a gente pilotou, que a gente fez as primeiras peças e viu que a gente errou no planejamento, que aquele grupo não está maduro o suficiente para produzir aquilo. Acho que esses são os principais problemas que têm surgido dentro desse universo.
Márcio
A gente trabalhando com projetos e com operações, temos que fazer muito gerenciamento das mudanças. Eu te pergunto bem nesta linha que você começou a introduzir, as consequências mais comuns e as consequências mais sérias dos imprevistos das mudanças que acontecem.
Lia
Eu acho que a principal consequência é custo, porque a gente está dentro do mercado de moda onde as coisas estão muito apertadas, quando a gente fala de lucro na moda, o lucro está na outra ponta que é na marca que vende.
O Ecotece atuada na parte da produção, onde as precificação são muito esmagadas, então por mais que a gente esteja atuando dentro de um nicho de moda sustentável que está disposto a pagar mais, a fazer as coisas de uma maneira diferente, ainda a gente tem um limite bem apertado para isso, então qualquer tipo de erro, por exemplo, a gente tem um grupo que estão muito distantes, os meus grupos às vezes eles estão até trinta e cinco quilômetros distância. Se eu recebo uma coleção que foi produzida e de repente ela tem vários defeitos, ela vai ter voltar para esses grupos, então impacto logístico, por exemplo, é enorme, vão existir diversos impactos também no trabalho de gestores, porque se até então ele estava focado em continuar organizando as produções, em gerir as demais que estão chegando, de repente ele tem que parar tudo o que ele está fazendo, para ficar resolvendo diversos problemas que vão surgindo dentro desse processo, isso gera bastante desgaste, retrabalho de equipe e desgaste nos grupos que produzem, clientes, acho que esses são os principais impactos que vão surgindo.
Márcio
A gente lembra que este podcast faz parte da jornada PQPS! Que hoje recebe a Lia Spínola do instituto Ecotece que tem tudo a ver com os processos de planejamentos que são parte dos conceitos de gestão de projetos. A gente está falando de mudanças, a gente sabe que as mudanças acontecem, mas uma parte delas conseguimos mitigar de acordo com o planejamento que temos. Eu quero saber de você, como é o processo de planejamento dos projetos do Ecotece? E como vocês fazem o acompanhamento desse planejamento enquanto vocês implementam os projetos?
Lia
Em moda a gente tem algumas ferramentas, que são ferramentas específicas para o nosso trabalho. Tentando explicar para quem não é da nossa área, tudo começa com uma etapa que chamamos de desenvolvimento. Essa etapa de desenvolvimento é como se fosse a gente fazer a forma do bolo.
No caso da moda seria a gente fazer fichas técnicas, fazer uma peça piloto, que vai ser a nossa peça base e depois toda a escala vai ser copiada dessa peça. E esse desenvolvimento ele pode ser feito ou pelo próprio Ecotece ou existem algumas marcas que fazem essa etapa fora e trazem para a gente já pronto. O que é mais desafiador, porque quando a gente cuida de produção desde desenvolvimento é mais fácil de controlar e mitigar mais problemas.
Essas primeiras bases, as fichas, as pilotos elas vão ser os materiais fundamentais para que a costureira depois possa replicar essa escala, é dali que ela vai produzir em escala. Então se a gente tiver algum erro nessas etapas, consequentemente toda a produção vai sair errada. Outras ferramentas que a gente usa é o orçamento, a gente tem um orçamento aberto que o gestor de produção vai se basear para poder fazer as negociações, sejam com os grupos, sejam com os fornecedores que estão envolvidos, por exemplo, se tiver que comprar elásticos, zíper é ali que a gente vai se basear, tem um calendário de produção, tanto daquela peça em si, então eu vou produzir uma camiseta, eu vou desenhar todos os fluxos dessa produção, o que vai ter vai ter? Vai ter corte, depois do corte vai para a estamparia, depois vai voltar para o grupo de costura, depois vai ter que passar, vai embalar e vai para o controle de qualidade. Então vai se desenhando um fluxo com cronograma. E além disso a gente tem um cronograma geral de tudo que está acontecendo dentro das produções.
A gente trabalha em uma grande rede, e uma das coisas que a gente busca é tentar otimizar o máximo possível das etapas e das coisas que estão acontecendo. Dentro do Ecotece a gente vai ter uns arranjos locais, por exemplo, eu estou em São Paulo, então vai ter Grande São Paulo que tem uma cidade que chama Santo André, e umas outras cidades perto de Santo André, São Bernardo, tem alguns grupos estão todos os meios próximos. Então vou tentar fazer com que uma produção seja toda produzida dentro desse arranjo local para tentar otimizar e facilitar os problemas que surjam seja mais fácil de serem resolvidos. Então essa é a primeira etapa, etapa o planejamento depois disso, quando começamos a executar dentro do Ecotece temos algumas ferramentas internas que a gente se comunica, a gente usa uma m programa chamado Asana que é basicamente um sistema de gestão de projetos que a gente adaptou um pouco para o nosso modelo de trabalho não é um programa de moda, então também seria interessante se tivesse alguma outra ferramenta que ajudasse para algumas coisas mais específicas, mas ainda não existe dentro do Ecotece, mas existe no mercado. E aí vamos ter um trabalho recorrente de acompanhamento dessas produções juntos aos grupos e basicamente isso é feito através do WhatsApp. O grupo vai receber materiais físicos, as fichas, as peças piloto e tudo que precisa ser feito, e o dia a dia da produção a checagem é feita através de comunicação pelo WhatsApp.
Márcio
Quando você mandou o material para a gente, você falou que é comum que o projeto termine diferente do orçamento do planejamento inicial. Você disse que são pontos que dificultam a criação e o estabelecimento de processos funcionais e o crescimento, tudo parece ser mais lento do que poderia ser. Como você acha que poderia ser modificado este quadro?
Lia
É uma pergunta interessante. Quando eu penso em produção, esta palavra isolada, me vem na cabeça uma coisa bem de engrenagem, processos, tipo Charlie Chaplin na fábrica. E paralelamente quando eu penso em produzir com o Ecotece, a primeira coisa que vem na minha cabeça são os grupos de produção, as pessoas. Então como eu penso como poderia ser, o desafio está exatamente nisso, como a gente pode ter uma produção de moda que seja humanizada, ou seja, que respeite as questões individuais das pessoas que estão envolvidas, que não seja um trabalho que deixe as pessoas ainda mais vulneráveis, que seja frágil, mas que ao mesmo tempo ele possa ser desenvolvido de uma maneira com menos stress, começo menos percalços. Então acho que esse é o que eu imagino de como poderia ser, que aí sim eu entendo que essa seria uma produção de moda que é sustentável, porque para ser sustentável também, a gente precisa fazer com que essas coisas fluam bem para todos os lados.
Márcio
Você está falando de todos os lados, outro ponto que você comentou foi que você sente falta do envolvimento de alguns grupos produtores, e esta questão de gerenciamento de partes interessadas é um ponto crucial de gestão de projetos. Qual que é a dificuldade de promover esse envolvimento dos grupos
Lia
Eu acho que não é só dos grupos, o Ecotece está envolvido com duas partes principais, que são as marcas de moda e os grupos produtores, e eu acho que mudar as lógicas de como as coisas são feitas é um desafio dos nossos tempos. Hoje a lógica de produção de moda está muito baseada numa coisa que é de passando pedido Então se a marca não faz a menor ideia de quem produz pra ela, ela também não está preocupada se o produtor tiver uma falha, e ele não está entregando aquilo que ela deseja, ela simplesmente troca. Acho que o Ecotece vai ter esse trabalho constante de educação e de tentar fazer com que as marcas também se envolvam mais nesse processo, que elas entendam que tem toda uma cadeia que precisa ser desenvolvida e de como que a gente pode fazer isso ser uma real parceria.
Quando falamos dos grupos a mesma coisa, a gente está aí trabalhando com pessoas que não necessariamente tiveram oportunidade de formação, tem gente que não sabe ler e escrever e a gente está trazendo um novo meio de pensar, um novo meio de se relacionar, onde a gente quer compartilhar, que as coisas sejam mais compartilhadas, que a gente se ajude mais, então acho que tem esse desafio de como levar essa conscientização e engajamento para os dois lados.
A gente entende no Ecotece que não é só fazer negócio, não é só simplesmente você ir lá chegar dentro da comunidade, por exemplo, achar que a gente tem uma ideia brilhante, uma solução brilhante para poder apoiar aquele grupo vulnerável em nosso caso, mas o grande desafio é de como fazer para que todo sistema realmente seja coerente com que todas as partes acreditam, de como que a gente consegue juntos construir uma coisa nova que não existe, a gente está tentando construir um sistema de moda que que ainda existe, a gente está desenhando esse junto, esse é o desafio.
Márcio
Na jornada PQPS! A gente sempre tem uma última pergunta que é invertida. Lia o que você quer perguntar para quem está te ouvindo agora? Qual é a questão que você deixa para as pessoas pensarem sobre os desafios que o Ecotece passa hoje?
Lia
Indo no caminho do que eu já estava comentando acho que a resposta de ouro que a gente busca, é como é que a gente consegue gerar Impacto social de uma maneira que seja financeiramente viável que se sustente, onde a gente tem processo de trabalho que sejam mais fluidos, seja mais dinâmicos para todos os lados, e ao mesmo tempo trabalhando dentro disso, dentro do momento do mundo e meu caso, dentro de um momento do mercado de moda que está ainda se re-entendendo e tateando o que pode ser essa mudança, como que a gente participa da mudança, e começa a ter um projeto ou um negócio que consegue realmente estabelecer.
Márcio
Lia muito bom falar com você novamente, e falar sobre o instituto Ecotece e sobre todos estes registros de práticas e de desafios que você trouxe.
Lia
Maravilha, foi ótimo. Obrigado, Espero que o pessoal tenha curtido um pouco do que eu consegui compartilhar.
Márcio
A conversa fica por aqui e a jornada PQPS, Perguntas e Questionamentos sobre Projetos Socioambientais continua nos nossos outros podcasts deste ciclo. Logo mais tem mais. Até!
Você ouviu PQPS perguntas e questionamentos sobre projetos socioambientais, uma conversa aberta com quem trabalha com projetos no tempo de desenvolvimento socioambiental parceiros operacionais Aupa e Ponte a Ponte. Apoio financeiro Instituto de cidadania Empresarial. Realização Rede Tekoha acesse mais conteúdos sobre as jornadas PQPS em www.aupa.com.br/pqps
Transcrito por Cristina Cordeiro.