O que é o direito à cidade
O conceito de direito à cidade foi criado em 1968, em Paris, pelo sociólogo e filósofo marxista Henri Lefebvre. Naquele ano, iniciada pela juventude, vivia-se uma uma onda de protestos incendiários contra reformas educacionais que culminou em uma greve geral, mobilizando toda a população da cidade. No mesmo ano, o Henri Lefebvre (1901-1991) publicou o primeiro de uma série de livros sobre o espaço urbano: o Direito à Cidade (no original, Le droit à la ville).
Neste contexto, o direito à cidade se posiciona criticamente ao processo desenfreado de urbanização e regulação do espaço urbano, realizado de forma centralizada, alienando aqueles que realmente “usam” o espaço urbano deste processo. Lefebvre criticava gestores públicos e urbanistas, pois questionava a função que as cidades tinham assumido:
ao invés do lugar do encontro, reunião e simultaneidade; a cidade havia se tornado uma mercadoria.
Lefebvre
Primeiro marxista a de fato voltar sua pesquisa para a concepção do espaço urbano, para Lefebvre, as consequências da urbanização superavam as consequências da industrialização, e as cidades passaram a ser produzidas e pensadas para serem mercadorias.
A cidade: na perspectiva do direito à cidade
O resultado, segundo o autor, era uma cidade pensada, projetada e produzida de acordo com os interesses dos seus donos, almejando sempre o maior retorno sobre sua mercadoria: o espaço urbano; ao invés de uma cidade que inclua as necessidades da grande camada populacional que de fato utiliza a cidade.
O trabalhador da periferia que enfrenta longas horas de transporte público, trabalha e volta a enfrentar as mesmas horas no retorno para casa era vítima, em sua concepção, de um espaço regulado, uma demarcação de vida com pouca possibilidade para o encontro e para o lazer. Isso se conecta profundamente com a série de posts que fizemos falando sobre o trabalho dos entregadores de aplicativos.
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Direito à cidade no Brasil
A chegada da discussão no Brasil
Bem recebido pelos acadêmicos, o trabalho de Lefebvre foi rapidamente traduzido para o português. Eram os anos da Ditadura Militar (1964-1985) e a noção de um Estado de Bem-Estar Social era distante: moradia digna, transporte ou emprego não eram direitos garantidos para a maior parte da população.
Na tese “Direito à Cidade: Uma trajetória Conceitual”, a pesquisadora Bianca Tavolori defendeu que se no meio acadêmico marxista da Europa e dos Estados Unidos o livro enfrentou ceticismo, principalmente por parte de pesquisadores como Manuel Castells, que estudavam movimentos sociais de luta por moradia (os quais Lefevbre considerava impeditivos para efetivação do direito à cidade), no Brasil, houve uma combinação dos pensamentos de Lefebvre, da pesquisa marxista e dos diversos movimentos sociais que se articulavam. É possível ler a pesquisa da autora aqui.
Em vista das desigualdades e vulnerabilidades do território brasileiro, começou a nascer no País a disputa por um imaginário de direito à cidade, articulada aos direitos de moradia, transporte, e cultura.
“Direito à cidade passou a ser um nome para dizer que queremos políticas de acesso a equipamentos básicos urbanos”
explica Tavolari.
“Direito à cidade é uma expressão muito importante também no sentido de que gera identificação: quando mencionada em reivindicações de esfera pública, as pessoas sentem que pertencem à cidade”.
Conforme descreve a autora, o conceito de direito à cidade saiu dos livros e discussões acadêmicas para ocupar os espaços da luta social, chegando até aos espaços jurídicos de delimitação do direito urbano.
A luta pelo direito à cidade no Brasil e a prática
No Brasil, por exemplo, a luta dos movimentos urbanos levou a Constituição a prever, em seu art. 5o, que a propriedade deve atender a sua função social, estabelecida de acordo com o plano diretor da cidade. O Estatuto da Cidade, legislação federal aprovada em 2001, reconhece o direito de todos a uma cidade sustentável. Ainda, com as manifestações de 2013 e a proximidade do desenvolvimento da Nova Agenda Urbana, declarada na Conferência das Nações Unidas sobre Habitação e Desenvolvimento Urbano Sustentável (Habitat III), realizada em Quito em 2016, as discussões sobre direito à cidade ficaram ainda mais acaloradas no Brasil. A Prefeitura de São Paulo chegou a ter uma Coordenação de Direito à Cidade instituída dentro da Secretaria Municipal de Direitos Humanos e Cidadania. Sobre este momento e as discussões de direito à cidade em São Paulo, você pode ler este artigo de Morgana Krieger e Esther Leblanc.
No entanto, é importante enfatizar que, retornando à Lefebvre, o direito à cidade não faz parte destes direitos na forma como conhecemos atualmente. Lefebvre estava pensando em uma sociedade inteiramente nova, em que os direitos não são concedidos por um “ente superior”. Na verdade, a noção radical do direito à cidade questiona a própria noção do Estado e do sistema capitalista. Para ele, a luta para a construção de um espaço urbano mais igualitário, com melhores condições de vida para todos – principalmente para a imensa maioria mais pobre – é a concretização do direito à cidade no cotidiano. O direito à cidade, assim, é tanto uma dimensão talvez utópica do futuro, um horizonte para o qual podemos caminhar, quanto este processo de caminhada. E, nesta caminhada, Lefebvre – e vários outros autores – privilegiam processos de autoconstrução como sendo o palco central deste novo espaço, um espaço que é apropriado por todos e em que as decisões são tomadas coletivamente.
Nos próximos posts desta série sobre direito à cidade, traremos exemplos de projetos que representam esta caminhada ao direito à cidade Continue acompanhando e até a próxima!